Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, B

“Eis os pensamentos do seu Coração, que permanecem ao longo das gerações: libertar da morte todos os homens e conservar-lhes a vida em tempo de penúria”(Sl 32,11.19).

Desde a Patrística, a água e o sangue do Coração de Jesus são símbolos dos sacramentos, do Batismo e da Eucaristia. A própria Igreja, como a nova Eva, é vista como nascida do lado aberto de Cristo na Cruz, o novo Adão. A contemplação do Coração de Jesus, jorrando sangue e água, sempre foi na Igreja fonte de piedade, oração, fé, graça. No entanto, uma festa propriamente dita do Coração de Jesus foi celebrada pela primeira vez em 20 de outubro de 1672 pelo Padre São João Eudes. Pouco tempo depois, as revelações de Santa Margarida Maria Alacoque(1675) contribuíram imensamente para a difusão dessa devoção. A característica própria dessa solenidade é a ação de graças pela riqueza insondável de Cristo e a contemplação reparadora do Coração Transpassado. O Papa Pio IX em 1856 estendeu a festa a toda a Igreja Latina(MARTIMORT, A. G., A Igreja em Oração IV, Vozes, Petrópolis, 1992).

A inefável riqueza do amor de Deus, que se manifesta em Jesus Cristo é o centro da Festa do Sagrado Coração de Jesus. Tanto a primeira leitura quanto a segunda leitura são extremamente significativas, sendo que a Segunda Leitura – Ef 3,8-12.14-19, por pertencer à Escritura cristã, é tipicamente cristológica, enquanto a Primeira Leitura – Os 11,1.3-4.8c-9 – evoca, em termos poéticos, o amor de Javé por seu povo. Mas exatamente a poesia da Primeira Leitura sensibiliza-nos pela mensagem de toda a liturgia de hoje: Deus ama com amor humano, com amor mais que humano! Descobrimos nesta leitura um crescendo paradoxal. Começa com a imagem da relação pai-filho entre Javé e seu povo. Apesar da incompreensão de Israel, Deus amou o povo com sentimentos de afeição, mais profundos do que se possa imaginar. Vem então – omitido na perícope litúrgica – o relato da infidelidade de Israel. Enfim, o poeta evoca o modo de agir de Deus diante da ingratidão. Embora ame com amor humano, não se decepciona. Nós nos decepcionamos e nos vingamos. Deus não se vinga da incompreensão. Um pai não pode esquecer seu filho(Os 11,8). Seu coração se vira nele. Deus perdoa, pois ele é Deus e não um homem mesquinho. O amor humano de Deus é mais humano do que o nosso.

Na primeira leitura(Os 11,1.3-4.8c-9)de Deus só sabemos falar à maneira humana, e Ele mesmo, quando quis entrar em diálogo conosco, falou-nos em linguagem de homem, que outra não sabemos entender. É nesta linguagem que o profeta nos anuncia, de maneira veemente, o amor de Deus por nós. Deus sempre cuidou de seu povo. A mensagem de Oseias é uma das mais sublimes, no Antigo Testamento, que retrata essa realidade. Ele alimentou, conduziu, protegeu, e ainda faz isso em nossos dias e, nestes tempos que são os últimos, o faz por meio de seu próprio Filho. “Eis, então, no dizer de Isaías, que “o Senhor é minha força, meu louvor e salvação”(Is 12,2).

Na segunda leitura (Ef 3, 8-12.14-19) o amor de Deus conhece-se pela manifestação que d’Ele nos é feita em seu Filho. É por Ele que nos é dado conhecer o desígnio do Pai, o qual não é outro senão o de chamar todos os homens para formarem um só corpo em Cristo Jesus, corpo este de que a Igreja é sinal. É em Cristo que nós conhecemos todo o tamanho do amor de Deus, perscrutamos todas as suas dimensões(Ef 3,18-19). Mas “conhecer” na mentalidade bíblica significa experimentar. Não é um conhecer intelectual, mas participativo. Esta participação se realiza pela combinação da oração e da fé com a prática da caridade de Cristo. Se fizermos isso, seremos sempre mais repletos da “plenitude de Deus”(Ef 3,9). Na primeira parte da segunda Leitura, São Paulo exprime em termos de contemplação cósmica as dimensões do Mistério de Cristo, sua riqueza, que não é outra coisa que a realidade da graça e do amor do Pai.

No Evangelho(Jo 19, 31-37) a melhor representação do Coração de Jesus é o Senhor crucificado, deixando sair do seu lado, aberto pela lança, o sangue e a água, figura dos sacramentos da Igreja, aí, nesse momento, nascida como Eva nascera do lado de Adão adormecido. O amor humano de Deus se manifesta plenamente em Jesus Cristo, que amou os seus até o fim(Jo 13,1). O simbolismo polivalente da água e do sangue do lado aberto de Cristo(Jo 19,33-37) sugere o quanto foi completa a sua doação. Simboliza a esperança que encontra em Cristo sua plenitude. Mostra o sangue do sacrifício ao mesmo tempo expiatório – o cordeiro que tira o pecado do mundo –; e libertador – o cordeiro pascal, cujos ossos não podiam ser quebrados – Jo 19,33.36. Mostra a água da efusão escatológica da bebida que não deixa sede, o Espírito(Jo 19,34), assinalada pelo batismo, sacramento do lado aberto do Cristo qual nasce a Igreja. O “lado aberto” significa a morte do pastor justo e perfeito, ao qual o povo levantará os olhos depois de o ter transpassado, início da converso total e definitiva(Jo 19,37).

Vivemos um tempo difícil de pandemia da COVID-19 em que o amor humano é degradado a um objeto de comércio e meio de alienação do homem. A contemplação das insondáveis riquezas do amor de Deus em Cristo se transforma numa fonte de vida. Amor que revela um Pai de incansável fidelidade afetiva a sues filhos, incansável porque ele é Deus e não um homem instável. Amor que une a criação com a redenção. Amor que revela que Deus é amor. Um amor sacrificado… isso pode não nos parecer muito atraente, mas é no sacrifício que se realiza o amor até o fim. O sacrifício não lhe tira a força de ser fonte de alegria imensurável, pois a alegria vem da partilha, e não há partilha sem doação. Se nosso tempo aprendesse isso do coração de Cristo; se nossos casais descobrissem que a “relação perfeita” consiste na doação sem reserva – e não na exploração sem reserva – ; se nossos jovens experimentassem o crescimento de sua ternura e expansividade no amor respeitoso que promove e não desgasta; se os pais tivessem aquela fidelidade afetiva, que nunca rejeita os filhos, nem mesmo depois da pior crise; se nossos diáconos, padres e bispos fossem capazes de levar à contemplação de tamanho amor, explicitando-o em sua palavra e, sobretudo, no exemplo de sua vida – então, a Igreja seria realmente o novo templo, de cujo lado fluíssem as águas salvadoras da Cruz.

A Solenidade do Sagrado Coração de Jesus nos revela o grande amor de Deus manifestado em seu Filho, que doou sua vida até a Cruz. Celebremos o Coração de Jesus, que se doou por nós. Doação feita na cruz, em que, de seu lado aberto pela lança, jorra o sangue da salvação e a água do Batismo. É por isso que devemos nos configurar a Cristo Ressuscitado. E o que significa isso? Ora, configurar-se ao Sagrado Coração de Jesus é, portanto, assumir o seu projeto de amor e doação em prol da pessoa e da dignidade. Isso é possível no trabalho e na dedicação, na ajuda e na sensibilidade ao clamor que sobe constantemente da garganta e do coração dos empobrecidos, dos marginalizados, dos sem-teto, sem-terra, sem-comida e sem tantas outras coisas das quais a lógica economicista os priva.

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